do Portal Brasileiro da Filosofia
Dois homens que se preocuparam com os
caminhos da América (e do mundo) disseram frases com as palavras “verdade” e
“liberdade” interconectadas. Seus nomes: Marcuse e Rorty. Marcuse disse certa
vez que ter uma concepção errada de verdade levaria a uma concepção errada de
liberdade. Rorty, por seu turno, diferentemente, afirmou que se deixarmos de
investigar a verdade (não sabemos como definir) para cuidarmos da liberdade
(que sabemos bem o que é quando a perdemos) estaremos fazendo algo melhor com
nossas energias.
A investigação que proponho aos que
ficarem motivados a partir deste pequeno texto, não deverá contrariar
marcusianos e rortianos. Os primeiros poderão investigar o que a filosofia diz
atualmente sobre a verdade para, enfim, formularem suas concepções e, então,
ver se isso realmente aperfeiçoa suas noções de liberdade.
Os segundos, não estarão gastando
energia à toa, uma vez que não estou propondo que se empenhem no tema
acreditando que vão fundamentar a liberdade, mas apenas que vão entender,
afinal, porque podemos, nos dias de hoje, falarmos meio que
esquizofrenicamente. Esquizofrenia? Sim, porque assim agimos: em determinados
momentos dizemos “eis aqui a verdade” e, então, quem nos escuta nos alerta “ei,
você não é o dono da verdade”, e então, não raro, saltamos de lado e avisamos,
“bem, tenho o modo meu de olhar as coisas, esta é a minha verdade”.
Ora, mas afinal, quem assim age estava ou não querendo dizer a verdade?
O que é “discutir a verdade” em
filosofia?
Começo pelo episódio de Pedro. “E
passada quase uma hora, um outro afirmava, dizendo: também este verdadeiramente
estava com ele, pois também é galileu. E Pedro disse: homem, não sei o que
dizes. E logo, estando ele ainda a falar, cantou o galo. E, virando-se o
Senhor, olhou para Pedro, e Pedro lembrou-se das palavras do Senhor, como lhe
havia dito: antes que o galo cante hoje, me negará três vezes”. Era então a
terceira vez que Pedro, ao ser reconhecido como amigo de Jesus, mentia,
afirmando que não conhecia seu mestre.
Pedro, o homem que fundou a Igreja de
Jesus, o incorruptível, era de fato um corrompido, um grande mentiroso? Pedro
foi, sem dúvida, naquele momento, um fraco. Um covarde. E certamente, naquele
momento, um mentiroso.
O que caracteriza a mentira?
Jacques Derrida nos lembra a diferença
entre o que é mentira e o que é falso. Ele tem de retomar Santo Agostinho para
tal, pois é somente a partir de uma perspectiva em que alguma subjetividade
está envolvida que a mentira pode se dar. O que vale para Santo Agostinho vale
para Derrida: o que conta, para dizer que uma expressão é fruto do ato de
mentir, é a intenção de quem a diz. A frase é de Agostinho: ‘não há mentira,
apesar do que se diz, sem intenção, desejo ou vontade de enganar’ (Apud
Derrida, 1996, p. 10). Derrida diz que “a mentira depende do dizer e do querer
dizer, do ato de dizer”, ela “permanece independente da verdade ou falsidade do
conteúdo”, ou seja, “daquilo que é dito” (cf. Derrida, 1996, pp 9-11).
Pedro foi mentiroso, porque
intencionalmente queria se livrar de Jesus no momento em que, estando seu
mestre preso, ele foi apontado como seguidor e, então, viu que poderia também
cair em desgraça como subversivo. Mas a noção de falsidade e de verdade não
cabem a Pedro, somente ao conteúdo de seu enunciado, de sua sentença: “Homem,
não sei o que dizes”. O que Derrida nos ensina é que o enunciado “Homem, não
sei o que dizes” é contrastado com outro enunciado, “também este estava
verdadeiramente com ele, pois também é galileu”. O que tomamos como estando em
jogo, neste caso, são enunciados e, portanto, verdade e falsidade. Embora eles
tenham sido pronunciados por homens, um que acusa e outro que se escusa, tais
enunciados podem ser desligados de quem os enunciou e se colocarem um contra o
outro. Se assim é, o enunciado de Pedro, “homem, não sei o dizes”, será dito
como verdadeiro ou falso. Mas se o enunciado é acoplado a uma intenção (o
desejo de Pedro de se livrar de Jesus naquele momento ou a tentativa de Pedro
de enganar os que o reconheceram), então o enunciado pode ser mentira ou verdade.
No estudo filosófico da verdade, um
primeiro ato pode ser o de distinguir os pares falso-verdadeiro e
mentira-verdade. Um segundo ato pode ser o de lembrar que certas correntes
filosóficas estão menos interessadas em tal distinção do que em investigar a
“natureza da verdade”. Aqui, não é o caso de Pedro e seu acusador, mas de Jesus
e Pilatos.
“Disse-lhe, pois, Pilatos: logo, tu és
rei? Jesus respondeu: tu o dizes que eu sou rei. Eu para isso vim ao mundo, a
fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade, ouve a minha
voz. Disse-lhe Pilatos: que é a verdade? E, dizendo isso, tornou a ir ter com
os judeus, e disse-lhes: não acho nele crime algum”.
Pilatos não podia mesmo ver crime
algum. Como o diálogo foi conduzido, importava menos para ele mentiras e
verdades, mas sim uma questão metafísica: “o que é a verdade?”. A verdade da
verdade – eis o que está em pauta aqui. Ao levar o rumo da conversa para tal
encruzilhada, propositadamente, pois ele parecia quer livrar Jesus (ou, ao
menos, se livrar do problema), Pilatos não tinha razão para continuar,
levantou-se e foi dizer aos judeus que ele não estava encontrando falta alguma
em Jesus.
Filosoficamente, a natureza da
verdade está relacionada, direta ou indiretamente, às “teorias de
verdade”. As teorias tradicionais ou metafisicamente fortes são as que parecem
querer explicar o que poderia alimentar respostas à questão “o que é a
verdade?”. Muitas vezes, tais teorias respondem positivamente, outras vezes
criam grandes enredos para induzir o leitor a captar a noção discutida. As
teorias não substantivas de verdade (ou não-metafísicas, ou metafisicamente
fracas), por sua vez, tendem a criar descrições de como ocorre na linguagem a
participação do termo “verdade” e/ou “verdadeiro” (cf. Blackburn, 1999).
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